fev 12 2014

Por um feminismo interseccional

Published by under ensaio

 feminismo2
Por Djamila Ribeiro*

De uma forma geral, pode-se dizer que o objetivo do feminismo é uma sociedade sem hierarquia de gênero; o gênero não sendo utilizado para conceder privilégios ou legitimar opressão. Ou como disse Amelinha Teles na introdução de Breve história do feminismo no Brasil, “falar da mulher, em termos de aspiração e projeto, rebeldia e constante busca de transformação, falar de tudo o que envolva a condição feminina, não é só uma vontade de ver essa mulher reabilitada nos planos econômico, social e cultural. É mais do que isso. É assumir a postura incômoda de se indignar com o fenômeno histórico em que metade da humanidade se viu milenarmente excluída nas diferentes sociedades no decorrer dos tempos”.

No Brasil, o “assumir essa postura incômoda”, o movimento feminista, teve início no século XIX, o que chamamos de primeira onda. Nesta, as reivindicações eram voltadas para assuntos como o direito ao voto e à vida pública. Em 1917, Nísia Floresta, que ao lado de Bertha Luz é considerada pioneira no feminismo brasileiro, fundou a Federação Brasileira pelo Progresso Feminino, que tinha como objetivo lutar pelo sufrágio feminino e o direito ao trabalho sem a autorização do marido.

A segunda onda teve início nos anos 70 num momento de crise da democracia. Além de lutar pela valorização do trabalho da mulher, o direito ao prazer, contra a violência sexual, também lutou contra a ditadura militar. O primeiro grupo que se tem notícia foi formado em 1972, sobretudo por professoras universitárias. Em 1975 formou-se o Movimento Feminino pela Anistia. No mesmo ano surge o jornal Brasil Mulher, editado primeiramente no Paraná e depois transferido para a capital paulista e que circulou até 1980.

Na terceira onda, que teve início da década de 90, começou-se a discutir os paradigmas estabelecidos nas outras ondas, colocando em discussão a micropolítica. Apesar de que, as mulheres negras estadunidenses, como Beverly Fisher, já na década de 70, começaram a denunciar a invisibilidade das mulheres negras dentro da pauta de reivindicação do movimento. No Brasil, o feminismo negro começou a ganhar força no fim dessa década, começo da de 80, lutando para que as mulheres negras fossem sujeitos políticos.

As críticas trazidas por algumas feministas dessa terceira onda, alavancadas por Judith Butler, vêm no sentido de mostrar que o discurso universal é excludente; excludente porque as opressões atingem as mulheres de modos diferentes, seria necessário discutir gênero com recorte de classe e raça, levar em conta as especificidades das mulheres. Por exemplo, trabalhar fora sem a autorização do marido, jamais foi uma reivindicação das mulheres negras/pobres, assim como a universalização da categoria mulheres tendo em vista a representação política, foi feita tendo como base a mulher branca, de classe média. Além disso, propõe,como era feito até então, a desconstrução da teorias feministas e representações que pensam a categoria de gênero de modo binário, masculino/feminino.

Simone de Beauvoir já havia desnaturalizado o ser mulher, em 1949, em O Segundo Sexo. Ao dizer que “não se nasce mulher, torna-se”, a filósofa francesa distingue entre a construção do “gênero” e o “sexo dado” e, mostra que não seria possível atribuir às mulheres certos valores e comportamentos sociais como biologicamente determinados. A divisão sexo/gênero funcionaria como uma espécie de base que funda a política feminista partindo da ideia de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído como algo que se impõe à mulher assumindo assim um aspecto de opressão. Essa base fundacional dual foi o ponto de partida para que a Butler questionasse o conceito de mulheres como sujeito do feminismo, realizando assim uma crítica radical a esse modelo binário e empreendendo uma tentativa de desnaturalizar o gênero.

Pode-se dizer que Problemas de gênero de Butler, é um dos grandes marcos teóricos dessa terceira onda, assim como o Segundo sexo de Simone de Beauvoir foi para a segunda. Segundo Harding, “as pesquisas acadêmicas voltadas às questões feministas esforçaram-se inicialmente em estender e reinterpretar as categorias de diversos discursos teóricos de modo a tornar as atividades e relações sociais das mulheres analiticamente visíveis no âmbito das diferentes tradições intelectuais”. Além disso, seu início foi ainda marcado pelo compromisso acadêmico direcionado à causa da emancipação das mulheres. Faz-se importante ressaltar que não existe apenas um enfoque feminista, há diversidade quanto às posições ideológicas, abordagens e perspectivas adotadas, assim como há grupos diversos, com posturas e ações diferentes.

Note-se que não fiz uma distinção entre o que seria teoria feminista – os estudos acadêmicos voltados às questões da mulher-, e o movimento feminista, por assim dizer na prática. Não o fiz porque corroboro com a visão de Patricia Hill Collins, de que a teoria é a minha prática. Uma deve existir para interagir dialeticamente com a outra em vez de se criar dicotomias estéreis. A teoria ajuda na prática e vice versa.

A relação entre política e representação é uma das mais importantes no que diz respeito à garantia de direitos para as mulheres e é justamente por isso que é necessário rever e questionar quem são esses sujeitos que o feminismo estaria representando. Se a universalização da categoria mulheres não for combatida, o feminismo continuará deixando de fora diversas outras mulheres e alimentando assim as estruturas de poder.

Não incluir, por exemplo, mulheres trans*, com a justificativa de que elas não são mulheres, reforça aquilo que o movimento tanto combate e que Beauvoir refutou tão brilhantemente em 1949: a biologização da mulher ou em termos beauvorianos, a criação de um destino biológico. Se não se nasce mulher, se ser mulher é um construto, ou em termos butlerianos, se o gênero é performance, não faz sentido a exclusão das mulheres trans como sujeitos do feminismo. O movimento feminista precisa ser interseccional, dar voz e representação às especificidades existentes nesse ser mulher. Se o objetivo é a luta por uma sociedade sem hierarquia de gênero, existindo mulheres que para além da opressão de gênero, sofrem outras opressões como racismo, lesbofobia, transmisoginia, urgente incluir e pensar as intersecções como prioridade de ação e não mais como assuntos secundários.
feminismo

* Feminista e aluna do Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de São Paulo.

Comentários desativados em Por um feminismo interseccional

fev 10 2014

Roda de conversa: “MOVIMENTOS AUTONOMISTAS E MANIFESTAÇÕES DE JUNHO”

Published by under roda de conversa,textos

com Pablo Ortellado (USP/Each) – autor dos livros “20 centavos: a luta contra o aumento” e “Estamos vencendo: resistência global no planeta”. Ativista de movimentos autonomistas e antiglobalização.

DIA 13 DE FEVEREIRO
18 HORAS
Sala 420, campus Guarulhos da Unifesp
Organização: FiloPol (Núcleo de Filosofia e Política)

Segue abaixo entrevista com Pablo Ortellado publicada em vice.com

Depois do dia 6 de junho deste ano, São Paulo nunca mais foi a mesma, com todo o clichê infeliz que esta frase nos permite. Nem o Brasil. As manifestações organizadas pelo Movimento Passe Livre contra o aumento da tarifa de transporte coletivo na cidade sacolejaram todo o território nacional, fazendo direita e esquerda se encontrarem nas ruas, num virginal macaréu político-ideológico.
Para falar sobre a atuação política do MPL, bati um papo com Pablo Ortellado, que lança no próximo fim de semana o livro 20 Centavos: a Luta Contra o Aumento, de autoria dele e em conjunto com Elena Judensnaider, Luciana Lima e Marcelo Pomar, pela Editora Veneta. A trajetória militante do autor começa nos anos 1980, quando o movimento punk se politiza e encontra a tradição anarquista no Brasil. Depois de passar pelo anarcosindicalismo e militar pelo movimento Antiglobalização durante os anos 1990, ele se gradua em filosofia, obtém o título de Doutor e hoje atua como professor de Gestão de Políticas Públicas na Universidade de São Paulo. “O livro é a tentativa de fazer uma leitura do que aconteceu em junho, principalmente na chave do MPL, mas ressaltando as dimensões propriamente estratégicas e políticas do movimento”, adiantou. Antes de entrevistá-lo, colei num debate que rolou numa sala de aula da USP, onde ele falava sobre o livro na presença de estudantes, professores e militantes do MPL. A seguir você lê nosso papo sobre o livro e sobre o êxito do movimento na redução da tarifa.VICE: Participei de um debate na USP em que você falava sobre o livro. Lá, você disse que os novos movimentos não têm capacidade de pensamento estratégico. Por quê?
Pablo Ortellado: 
Movimentos desse tipo, como foi o movimento Antiglobalização, o 15-M na Espanha, o Occupy Wall Street, têm muita dificuldade de fazer uma ação estratégica. Como dizemos no livro, eles mobilizam mais processos do que resultados. Ou seja, eles valorizam muito mais o processo de constituição da luta, que seja democrático, horizontalista — e também que ele seja criativo e interessante —, do que a capacidade de transformação que ele tem a curto prazo. É como se o movimento fosse a gênese da nova sociedade. Por isso, ele precisa ser muito cuidadoso na maneira como conduz o processo, na maneira como zela por sua democracia interna. Outro elemento que ajuda a entender isso é que essa nova democracia traz para o jogo político pessoas que não têm experiência política. Com os envolvimentos de massa antigos, você tinha lideranças que conduziam. As opções estratégicas e as decisões eram tomadas por dirigentes que tinham pleno entendimento do funcionamento da política. Como esses movimentos são muito mais democráticos, no sentido de que eles efetivamente tomam as decisões importantes conjuntamente, isso faz com que pessoas que não têm experiência política participem da política e tentem aplicar restrições características da vida pessoal, que é o principismo: a ideia de que devo reger minhas ações por princípios. Ao que passo que, na política, quando você busca resultados práticos de curto prazo você mede suas ações não por princípio, mas por resultado.O livro analisa a capacidade de estratégia do MPL em 2013 como uma campanha intensa e de menor duração. Você acha que ter os R$ 0,20 como meta, em vez de tarifa zero, tornou o objetivo do MPL mais exequível?
Exatamente. Essa é a grande inovação. O MPL, hoje, é contra a mercantilização do transporte, que é o acesso ao deslocamento urbano por meio do pagamento de tarifa. Mas ele não colocou essa meta de longo prazo como resultado da ação — que tem resultado de curto prazo, a redução da tarifa. E essa estratégia mudou completamente a maneira como o movimento se colocava porque ela fazia com que toda a força da sociedade se direcionasse para uma meta: a revogação do aumento.O livro acompanha de maneira conclusiva o posicionamento da imprensa. Por que você acha que nos primeiros atos tudo era visto de forma negativa pela mídia, inclusive com editoriais pedindo maior rigor policial contra as depredações?
Na verdade, no começo da campanha a imprensa seguiu o padrão clássico de condenar manifestações populares que fazem uso da ação direta e da desobediência civil. Não foi nenhuma novidade. O que teve de muito novo foi a mudança depois da repressão do dia 13 de junho. O que a gente defende no livro é que houve dois processos ali. Fazendo uma análise mais detida das redes sociais, tanto do Twitter quanto no Facebook, a gente vê que nos dias 12 e 13, antes da repressão, outras pautas já tinham se grudado na reivindicação pela redução da tarifa — principalmente as pautas relativas ao combate à corrupção. Esses movimentos que estavam atuando pela internet já tinham se espelhado na luta contra o aumento e falado: “Olha, o brasileiro luta, ele não é trouxa, ele vai pra rua”. Foi um fenômeno mais ou menos espontâneo. Essas outras pautas que ampliaram o foco, na verdade, fizeram o movimento perder o caráter estratégico de novidade. A grande novidade não é ter essa dimensão estratégica, é ser um evento de novo tipo, horizontal, participativo e ter essa dimensão estratégica. Isso quase se perdeu.Outro tópico do livro é abordar o apoio da juventude do PT na luta contra o aumento da tarifa. Foi um ponto relevante para estabelecer diálogo com a prefeitura?
Foi importante porque a pressão interna dentro do PT contribuiu bastante para a decisão da revogação do aumento. E a juventude do PT foi o primeiro setor do partido a apoiar a causa. Pelo que acompanhei, foi muito difícil, porque eles divulgaram a nota em um dia, e no seguinte, a sede do PT foi apedrejada. Eles sofreram muita pressão, mas abriram uma brecha. Pouco a pouco, nos dias 11, 12 e 13, outros setores foram somando. Até que, finalmente, depois da repressão do dia 13, aí até o Zé Dirceu apoia — a gente documenta isso no livro. E vários outros deputados e lideranças do PT começam, pouco a pouco, a mudar de posição em relação aos protestos. Isso foi muito importante para legitimar a decisão de revogação do aumento, que sai só no dia 19.Durante o debate na USP, você disse que a luta criativa é uma característica da contracultura. Você acha que o MPL se encaixa nisso?
O MPL vem um pouco disso, mas acho que é uma característica que eles têm menos do que o movimento Antiglobalização, de onde vêm os militantes. Mas ele mantém um pouco a reflexão estética sobre a luta, a ideia de todas as faixas serem pretas, a organização da dinâmica da rua como uma espécie de teatro de rua. Em outras campanhas isso foi mais presente: a ideia de você ter uma paródia da tropa de choque, de você ter o exército de palhaços. Em outros MPLs, você tinha essa dimensão de teatro de rua também, como o MPL de Florianópolis. Acho que ele tem o cuidado e uma preocupação com essa dimensão estética e criativa do movimento, que é mais presente do que em movimentos tradicionais, embora eu ache que essa dimensão tenha dado uma diminuída com o passar dos anos na história do MPL.A queima da catraca em todos os atos é um grande símbolo, não é?
Um grande símbolo. A queima das catracas, a ideia de você abrir as faixas em lugares estratégicos, preparando a composição visual do movimento…Como você analisa a horizontalidade do MPL? Isso valoriza a democracia interna do movimento?
Ele é um movimento bem horizontal. As decisões são tomadas em assembleias e as discussões do MPL são enormes. As reuniões deles costumam durar oito horas. Todas as decisões são tomadas coletivamente. É um movimento bastante horizontal, bastante participativo.Depois do ato do dia 13, na Consolaçãouma multidão foi às ruas se juntar ao protesto. As pessoas tinham muitas pautas, como saúde, educação, PEC 37, corrupção. Você acha que isso tirou o foco da luta sobre os 20 centavos?
Eu acho que ela quase tirou. Foi uma tensão que vivemos nos dias que se seguiram, do dia 16 até o dia 19. Rolou uma pressão. Por causa dessa ampla exposição nos meios de comunicação, isso lançou nas ruas uma multidão com um conjunto de reivindicações que desfocava tudo o que essa luta tinha trazido. Essa dimensão estratégica foi confrontada por um conjunto de pautas que não tinha meta nenhuma. Era simplesmente uma insatisfação genérica puramente autoexpressiva. No entanto, o MPL soube conduzir, acolher essas pessoas que estavam indo às manifestações e subordinar todas essas novas reivindicações à primeira demanda, que era a dos R$ 0,20. Por isso, acho eu, o MPL conseguiu efetivamente: a tarifa foi reduzida. Mas várias pessoas que entraram na luta com essas outras reivindicações se sentiram traídas, falando que o MPL abandonou a luta. Acho que isso tem a ver com essa expectativa que eles tinham de que essas outras demandas fossem incorporadas pelo MPL. Que é uma coisa que acho que não tinha nenhum cabimento.No debate, você fez uma comparação entre Occupy Wall Stret e MPL, dizendo que ganhamos meio bilhão por ano e eles não atingiram um objetivo concreto. A que se deve essa análise?
Eles tiveram ganhos. O que defendemos no livro é que essa dimensão processual é importante. Organizar milhares de pessoas, ensiná-las a se organizarem de maneira direta, criar novas relações sociais participativas é um ganho. A questão é que esse ganho, em geral, tem como contrapartida a perda, uma certa incapacidade de ganhos de curtos prazo, que é o que aconteceu com o Occupy Wall Street — um movimento que nasceu quando a revista Adbusters lança uma provocação e convoca ativistas a ocupar a Wall Street com uma única demanda. E as pessoas vão lá, cria-se um movimento com enorme repercussão que se nega a ter uma única demanda. Eles se negam a ter uma pauta única, que daria a eles uma pauta estratégica. A grande novidade do MPL é que ele consegue ser um movimento que, ao mesmo tempo em que valoriza o processo, consegue ter uma dimensão estratégica.Analistas mais conservadores acham que o vigor do movimento se perdeu, enquanto analistas mais liberais acham que ainda estamos em um momento de latência. O que você acha?
Olha, o que acho curioso é que as coisas mais interessantes que aconteceram depois de junho não aparecem nos meios de comunicação, que estão seguindo uma pauta jornalística de cobrir pequenas manifestações, qualquer pequena passeata que surja. No entanto, quando a gente olha, principalmente para Belo Horizonte, com a Assembleia Popular, e para Fortaleza, na luta pela preservação de um parque, vemos os processos realmente acontecendo. Centenas, milhares de pessoas. Mas como elas não têm essa forma da manifestação de rua, e não estão em grandes centros como Rio e São Paulo, ficam meio invisíveis. Mas são os processos mais vivos hoje no país, herdeiros das mobilizações de junho.Você acha que depois da revogação, a população se sente mais empoderada para atuar em novas lutas?
Acho que sim. Desde os anos 1980, não tem uma mobilização popular que consiga um ganho tão efetivo, tão claro, tão completo. Todo dia, quem pega ônibus, metrô ou trem, passa o cartão e vê o resultado da luta. Isso vai ter efeitos de longo prazo. Não imagino nenhum governante aumentando essa tarifa nos próximos dois anos. Até esse aprendizado começar a ficar longínquo na memória, acho que ninguém vai ser tolo de aumentar a tarifa.

One response so far

jan 22 2014

Um ano de rolezinhos e lutas

Published by under artigos

14-01-22_edson-teles_um-ano-de-rolezinhos-e-lutas
Por 
Edson Teles.

O ano de 2014 inicia-se sob a promessa de ser pleno de lutas e profunda movimentação política. Com a herança das manifestações de junho de 2013, a expectativa da realização da Copa do Mundo no “país do futebol” e das eleições para Presidência, governos dos estados e Congresso Nacional convidam o Brasil e a sua jovem democracia a experimentarem um ano dos mais políticos, se tomarmos esta palavra como sinônimo de relações conflituosas e dinâmicas em torno das questões que tocam em nossas vidas cotidianas.

Nem mesmo terminamos o primeiro mês do ano e o “rolezinho” toma as principais manchetes da mídia tradicional, das redes sociais e dos espaços alternativos de debates públicos. Realizado há vários anos como modo de encontro e lazer pelos jovens da periferia, o “rolezinho” ganhou uma conotação política ao ser inserido entre as questões que giram em torno da contestação e da ocupação dos espaços urbanos. Como uma espécie de sequência das manifestações do ano passado, este tipo de movimentação alimenta os debates sobre o modo como os governos democráticos vão lidar com as imprevisibilidades de ações que funcionam como momentos criativos e de experimentação de práticas livres, em meio a uma sociedade dedicada ao controle e à disciplinarização dos corpos.

É fato que os “rolezinhos” em shoppings estão muito mais ligados, no imaginário de seus participantes, a uma demanda por inserção em um mundo de consumo e de realização de desejos distantes dos moradores das periferias das grandes cidades. Diferente das manifestações de junho passado, não há uma pauta de reivindicações e nem mesmo a escolha de um inimigo imediato a ser alvejado para a conquista de suas demandas. A galera quer apenas habitar um espaço de lazer, com ar fresco em pleno verão escaldante e encontrar gente legal, bonita e disposta a se conhecer.

Contudo, uma democracia com um forte legado autoritário, em especial aquele vindo da recente ditadura militar, tende a ver a reunião de pessoas pobres, da periferia, que não têm a posse da propriedade, como algo perigoso e sem sentido. Quando pessoas de direita bradam “deixem os clientes dos shoppings em paz”, nada mais expressam que a postura conservadora de parte da sociedade brasileira que se encontra feliz e realizada com a atual condição social e política do mundo. Interessa a estes manter ou aumentar suas posses, e sua reação é o apoio à imediata repressão, novamente da polícia militar, contra os jovens dos “rolezinhos”. Cena bizarra nas entradas de shoppings: bala de borracha, bomba de gás, cassetete, revista e decisão sobre quem é “vândalo” e quem é o verdadeiro consumidor.

A lógica da governabilidade, a razão política dos governos democráticos, não pode e não tem como lidar e controlar a ação política em sua plenitude e contingência. A imprevisibilidade e a criatividade destas ações seguem as manifestações de junho ao contestar o lugar que devemos ocupar e o modo de sermos. Os governos sabem, e com grande desenvoltura, lidar com os acordos palacianos, com a distribuição de cargos e as decisões tomadas sob a escuta das previsíveis elites e oligarquias políticas. Mas, com as ruas e os modos cada vez mais inusitados como são ocupadas, a racionalidade de governo tem sérias dificuldades.

O ano de 2014 nasce como momento oportuno para os governantes aprenderem com o povo outra visão das relações sociais e políticas.

Não são de direita, não são representantes de forças ocultas, não são fantasmas, não são contra os direitos sociais e seus programas de inclusão, não são contra este ou aquele candidato, ou um ou outro partido. Os jovens dos “rolezinhos”, os manifestantes de junho, os militantes do movimento “Não vai ter Copa” são lutadores contra o modo como tradicionalmente o país dispõe de nossas terras, ruas, espaços públicos, riquezas e instituições.

Fonte:http://blogdaboitempo.com.br/2014/01/22/um-ano-de-rolezinhos-e-lutas/

 

Comentários desativados em Um ano de rolezinhos e lutas

jan 15 2014

nós mesmos somos

Published by under citações

“É muito fácil ser antifascista no nível molar, sem ver o fascista que nós mesmos somos, que entretemos e nutrimos, que estimamos com moléculas pessoais e coletivas” Deleuze e Guattari

 

One response so far

dez 30 2013

Estado de exceção é o “cacete”

Published by under textos

13.12.11_Mauro Iasi_Estado de exceção é o cacete
Por Mauro Iasi.

“Madeira de dar em doido
vai descer até quebrar
Vandré

Diante da barbárie instalada e da descarada ação autoritária do Estado brasileiro diante das manifestações, muitos têm utilizado a expressão “Estado de exceção” indicando o risco da naturalização de práticas que desconsideram o ordenamento jurídico estabelecido e os princípios de um suposto “Estado de direito” que teria substituído a ditadura militar.

Compreendemos a intenção daqueles que assim procedem no justificado intuito de defesa da ordem constitucional, de princípios elementares na defesa dos direitos humanos e de práticas, digamos, civilizadas. Há no entanto um risco que reside no fato de supor que existe uma forma, considerada virtuosa, que consiste no respeito formal das regras e procedimentos, sendo os “desvios”, apenas anomalias que se controladas tudo funcionaria bem. Infelizmente a realidade da sociedade brasileira parece provar que a exceção é a regra.

O Estado de classe no Brasil que tem por fundamento a defesa da ordem dapropriedade privada e as condições que garantam a acumulação de capitais, sempre agiu combinando diferentes formas de garantia da ordem, ora predominando formas repressivas, ora na busca da formação de consensos. O que importa ressaltar é que mesmo nos momentos nos quais a busca por formas de legitimação e de hegemonia predominam, o aspecto repressivo nunca foi relegado.

Tal aspecto fica evidente na transição da ditadura burguesa em sua forma militar para uma ditadura burguesa na forma de uma democracia, ou de um denominado “Estado de Direito”. É, sem sombra de dúvida, de grande relevância que aspectos formais sejam garantidos, como a garantia do habeas corpus, não ser preso sem uma acusação formal e dentro do rito de um devidoprocesso legal, o direito de ampla defesa, o cumprimento da pena em condições estabelecidas pela Lei de Execuções Penais, entre outros.

A ilusão, no entanto, é a suposição de que uma vez garantidos no ordenamento jurídico e no quadro de uma ordem institucional que torne praticável, tais direitos e práticas passem a ser efetivos. Os chamados “desvios” seriam reminiscências de um Estado autoritário que vicejam nos interstícios de um Estado de Direito, como práticas anômalas. Parece-nos que esta aproximação desconsidera que tais práticas permanecem porque têm uma funcionalidade específica na ordem da sociedade de classes a ser mantida; e que se fundamenta em contradições que se reproduzem manifestando-se em desigualdades de fato que a igualdade formal não consegue reverter. Como dizia Martín Fierro, genial personagem gaúcho de José Hernández, “a justiça é como uma teia de aranha: quando o bicho é pequeno o prende, quando é grande a rompe”.

Vamos a alguns exemplos, todos ocorridos no quadro de um Estado Democrático de Direito. O primeiro condenado por participar na manifestações de rua que eclodiram no Brasil em 2013 é um morador de rua chamado Rafael Vieira, acusado pelo Ministério Público e condenado pelo juiz Guilherme Shilling Pollo Duarte, por estar de porte de dois frascos de desinfetante e água sanitária na rua no momento de uma manifestação. Para o Ministério Publico tratava-se de “aparato incendiário ou explosivo” e para o digníssimo juiz “a utilização do material incendiário, no bojo de tamanha aglomeração de pessoas, é capaz de comprometer e criar risco considerável à incolumidade dos demais participantes”.

Mesmo considerando o risco que um material de limpeza poderia produzir na imundice da ordem política reinante, não nos parece ser esta a lógica da condenação, toda ela fundada, vejam só, no depoimento de um policial civil que alega que ele foi preso porque estava com o material na mão, material que, segundo o laudo da policia, o suspeito portava “artefatos semelhantes a um coquetel molotov”. Foi suficiente para que o ministério público transformasse isso em porte de material explosivo e enquadrasse o morador de rua no inciso III, artigo 16 do Código do Desarmamento.

Duas observações simples, que constam do próprio laudo da polícia: o recipiente não continha panos ou trapos que poderiam servir como mechas e o recipiente era de PLÁSTICO, o que impede a fragmentação e não serve como coquetel molotov! Rafael Vieira tem 26 anos, é negro e vem de duas sentenças cumpridas no sistema prisional.

Uma mulher de 19 anos foi condenada em 2005 por roubar um pote de manteiga porque seu filho estava com fome. Não participava de uma manifestação e a manteiga não poderia explodir o palácio dos Bandeirantes. Passou 128 dias presa, apesar dos recursos de seu advogado que pediu a liberdade provisória de sua cliente, recursos que foram negados por quatro vezes. Depois de um recurso ao Superior Tribunal de Justiça ela foi condenada a quatro anos em regime semi-aberto.

No dia primeiro de dezembro de 2013, um dos protagonistas do filme Terra vermelha, que trata da luta do povo Guarani-Kaiowá pela demarcação de suas terras, foi assassinado. Seu nome era Ambrósio Vilhalva Kaiowá. Não se trata de um caso isolado, desde 2003 foram assassinadas 500 índios no país e é evidente a relação destas mortes com a luta pela demarcação de suas terras e a criminosa inoperância do governo. Durante os governos de Lula e Dilma o numero de mortes entre os indígenas cresceu em 168%.

Não é apenas com o sangue indígena que se tinge a terra de vermelho. A luta pela terra ceifou muitas vidas de camponeses e militantes, só nos primeiros quatro meses de 2012 foram assassinados 12 lutadores e, segundo relatório sobre os conflitos no campo no Brasil “os conflitos pela posse de terra saltaram de 853 em 2010 até 1.035 em 2011, com um crescimento de 21,32%, assim como o aumento de 177,6% do número de camponeses ameaçados de morte (de 125 a 347)”.

Nos últimos dez anos a PM do Rio de Janeiro matou cerca de dez mil pessoas, a maioria jovens e negros. No conjunto destes dados chama nossa atenção os chamados “autos de resistência”. Entre 2005 e 2007 foram 707 casos de autos de resistência com autoria reconhecida, dos quais apenas 355 viraram inquéritos policiais, 19 foram encaminhados à justiça, 16 foram arquivados e só um foi levado a jure resultando em condenação.

Em 2012, só em São Paulo, foram 5,3 mil internações involuntárias para “tratar” dependentes químicos. Este numero saltou de algo entorno de 700 internações involuntárias em 2003 para esta marca de cinco mil em 2012 e práticas semelhantes estão se disseminando nas principais capitais brasileiras, com destaque para o Rio de Janeiro.

Ressalto estes fatos pois para todos os casos descritos há aparatos legais e parâmetros jurídicos e institucionais estabelecidos. São pobres, negros, índios, camponeses sem terra, loucos, manifestantes vândalos, que incomodam a ordem do mercado e do capital. As portas de seu barracos não precisam de mandatos judiciais para serem derrubadas, seus corpus não tem direitos, podem ser presos e mantidos incomunicáveis, seus corpos desaparecem (caiu o numero de mortes em confronto com a polícia e cresceu o numero de desaparecidos), seus sofrimentos psíquicos atrapalham a beleza dos jardins estéreis e assépticos, sua urina cheira a mijo.

Para estes restos… o cacete, o porrete da ordem, a cadeia, o manicômio, os porões, sacos plásticos na cabeça, covas rasas, matagais, tapas na cara, valas comuns, celas lotadas. Não como exceção, como regra, ração diária de barbárie, exercício sistemático de arbitrariedade. Como dizia Brecht “No regime que criaram a humanidade é exceção. Assim, quem se mostra humano paga caro essa lição”.

Na abstração do ordenamento jurídico reina uma ordem abstrata que se choca com a carne da realidade. Na vida cotidiana das contradições os agentes do Estado e seus aparatos operam no quadro de um pragmatismo de fazer inveja aos altos escalões do governo. A Lei de Execuções Penais determina que cada preso tenha seis metros quadrados, mas a política de garantia da ordem continua mandando gente para a cadeia num volume exponencial, o que resulta em setenta centímetros quadrados para cada preso. O que faz o agente penitenciário? Fecha a porta e espera passar seu horário de trabalho.

No frio da noite do deserto uma mulher sente as dores do parto. São pobres, vagam sem terra guiados por uma estrela que perdeu seu rumo. O Estado resolveu combater profecias assassinando crianças. Eles se abrigam numa manjedoura na qual os pacientes esperam para ser atendidos em macas pelos corredores ou em um pedaço de chão sujo. Seu pai operário desempregado, sua mãe carregando no corpo a opressão de milênios sobre as mulheres desde a reintegração de posse lá no paraíso. A criança crescerá para ser assassinada pelo Estado, não antes de passar por um julgamento duvidoso e ser torturado pelos agentes da UPP romana em Jerusalém.

Nos momentos finais de agonia, entre dois ladrões, um bom e outro mau – diferença desconsiderada na sentença proferida e na crucificação realizada –, o condenado do meio olha para os céus e maldiz seu pai (não o marceneiro, o outro: o Abstrato). São três os condenados que sofrem, cada um em sua cruz. Afastando o olhar, vemos nos morros ao redor, centenas, milhares de cruzes sob um céu de chumbo que se fecha sobre o mundo.

O império que parecia eterno ruiu. O juiz continua até hoje lavando suas mão sujas de sangue. Naquele morro haviam três condenados pelo Estado, dois ladrões e um revolucionário. Dizem que só um… apenas um… ressuscitou.

Feliz natal e um ano cheiinho de lutas contra o Estado Burguês. É melhor preparar as cadeias, porque não vamos parar de lutar.

 

One response so far

dez 10 2013

INTRODUÇÃO À VIDA NÃO FASCISTA (1)

Published by under textos

Durante os anos 1945-1965 (falo da Europa), existia uma certa forma correta de pensar, um certo estilo de discurso político, uma certa ética do intelectual. Era preciso ser unha e carne com Marx, não deixar seus sonhos vagabundearem muito longe de Freud e tratar os sistemas de signos -e significantes- com o maior respeito. Tais eram as três condições que tornavam aceitável essa singular ocupação que era a de escrever e de enunciar uma parte da verdade sobre si mesmo e sobre sua época.

Depois, vieram cinco anos breves, apaixonados, cinco anos de júbilo e de enigma. Às portas de nosso mundo, o Vietnã, o primeiro golpe em direção aos poderes constituídos. Mas aqui, no interior de nossos muros, o que exatamente se passa? Um amálgama de política revolucionária e anti-repressiva? Uma guerra levada por dois frontes – a exploração social e a repressão psíquica? Uma escalada da libido modulada pelo conflito de classes? É possível. De todo modo, é por esta interpretação familiar e dualista que se pretendeu explicar os acontecimentos destes anos. O sonho que, entre a Primeira Guerra Mundial e o acontecimento do fascismo, teve sob seus encantos as frações mais utopistas da Europa -a Alemanha de Wilhem Reich e a França dos surrealistas- retornou para abraçar a realidade mesma: Marx e Freud esclarecidos pela mesma incandescência.

Mas é isso mesmo o que se passou? Era uma retomada do projeto utópico dos anos trinta, desta vez, na escala da prática social? Ou, pelo contrário, houve um movimento para lutas políticas que não se conformavam mais ao modelo prescrito pela tradição marxista? Para uma experiência e uma tecnologia do desejo que não eram mais freudianas? Brandiram-se os velhos estandartes, mas o combate se deslocou e ganhou novas zonas.

O Anti-Édipo mostra, pra começar, a extensão do terreno ocupado. Porém, ele faz muito mais. Ele não se dissipa no denegrimento dos velhos ídolos, mesmo se divertindo muito com Freud. E, sobretudo, nos incita a ir mais longe.

Seria um erro ler o Anti-Édipo como a nova referência teórica (vocês sabem, essa famosa teoria que se nos costuma anunciar: essa que vai englobar tudo, essa que é absolutamente totalizante e tranquilizadora, essa, nos afirmam, “que tanto precisamos” nesta época de dispersão e de especialização, onde a “esperança” desapareceu). Não é preciso buscar uma “filosofia” nesta extraordinária profusão de novas noções e de conceitos-surpresa. O Anti-Édipo não é um Hegel pomposo. Penso que a melhor maneira de ler o Anti-Édipo é abordá-lo como uma “arte”, no sentido em que se fala de “arte erótica”, por exemplo. Apoiando-se sobre noções aparentemente abstratas de multiplicidades, de fluxo, de dispositivos e de acoplamentos, a análise da relação do desejo com a realidade e com a “máquina” capitalista contribui para responder a questões concretas. Questões que surgem menos do porque das coisas do que de seu como. Como introduzir o desejo no pensamento, no discurso, na ação? Como o desejo pode e deve desdobrar suas forças na esfera do político e se intensificar no processo de reversão da ordem estabelecida? Ars erotica, ars theoretica, ars politica.

Daí os três adversários aos quais o Anti-Édipo se encontra confrontado. Três adversários que não têm a mesma força, que representam graus diversos de ameaça, e que o livro combate por meios diferentes.

1) Os ascetas políticos, os militantes sombrios, os terroristas da teoria, esses que gostariam de preservar a ordem pura da política e do discurso político. Os burocratas da revolução e os funcionários da verdade.

2) Os lastimáveis técnicos do desejo – os psicanalistas e os semiólogos que registram cada signo e cada sintoma, e que gostariam de reduzir a organização múltipla do desejo à lei binária da estrutura e da falta.

3) Enfim, o inimigo maior, o adversário estratégico (embora a oposição do Anti-Édipo a seus outros inimigos constituam mais um engajamento político): o fascismo. E não somente o fascismo histórico de Hitler e de Mussolini – que tão bem souberam mobilizar e utilizar o desejo das massas -, mas o fascismo que está em nós todos, que martela nossos espíritos e nossas condutas cotidianas, o fascismo que nos faz amar o poder, desejar esta coisa que nos domina e nos explora.

Eu diria que o Anti-Édipo (que seus autores me perdoem) é um livro de ética, o primeiro livro de ética que se escreveu na França depois de muito tempo (é talvez a razão pela qual seu sucesso não é limitado a um “leitorado” [“lectorat”] particular: ser anti-Édipo tornou-se um estilo de vida, um modo de pensar e de vida). Como fazer para não se tornar fascista mesmo quando (sobretudo quando) se acredita ser um militante revolucionário? Como liberar nosso discurso e nossos atos, nossos corações e nossos prazeres do fascismo? Como expulsar o fascismo que está incrustado em nosso comportamento? Os moralistas cristãos buscavam os traços da carne que estariam alojados nas redobras da alma. Deleuze e Guattari, por sua parte, espreitam os traços mais ínfimos do fascismo nos corpos.

Prestando uma modesta homenagem a São Francisco de Sales, se poderia dizer que o Anti-Édipo é uma Introdução à vida não fascista. (2)

Essa arte de viver contrária a todas as formas de fascismo, que sejam elas já instaladas ou próximas de ser, é acompanhada de um certo número de princípios essenciais, que eu resumiria da seguinte maneira se eu devesse fazer desse grande livro um manual ou um guia da vida cotidiana:

  • Libere a ação política de toda forma de paranóia unitária e totalizante;
  • Faça crescer a ação, o pensamento e os desejos por proliferação, justaposição e disjunção, mais do que por subdivisão e hierarquização piramidal;
  • Libere-se das velhas categorias do Negativo (a lei, o limite, a castração, a falta, a lacuna), que o pensamento ocidental, por um longo tempo, sacralizou como forma do poder e modo de acesso à realidade. Prefira o que é positivo e múltiplo; a diferença à uniformidade; o fluxo às unidades; os agenciamentos móveis aos sistemas. Considere que o que é produtivo, não é sedentário, mas nômade;
  • Não imagine que seja preciso ser triste para ser militante, mesmo que a coisa que se combata seja abominável. É a ligação do desejo com a realidade (e não sua fuga, nas formas da representação) que possui uma força revolucionária;
  • Não utilize o pensamento para dar a uma prática política um valor de verdade; nem a ação política, para desacreditar um pensamento, como se ele fosse apenas pura especulação. Utilize a prática política como um intensificador do pensamento, e a análise como um multiplicador das formas e dos domínios de intervenção da ação política;
  • Não exija da ação política que ela restabeleça os “direitos” do indivíduo, tal como a filosofia os definiu. O indivíduo é o produto do poder. O que é preciso é “desindividualizar” pela multiplicação, o deslocamento e os diversos agenciamentos. O grupo não deve ser o laço orgânico que une os indivíduos hierarquizados, mas um constante gerador de “desindividualização”;
  • Não se apaixone pelo poder

Poder-se-ia dizer que Deleuze e Guattari amam tão pouco o poder que eles buscaram neutralizar os efeitos de poder ligados a seu próprio discurso. Por isso os jogos e as armadilhas que se encontram espalhados em todo o livro, que fazem de sua tradução uma verdadeira façanha. Mas não são as armadilhas familiares da retórica, essas que buscam seduzir o leitor, sem que ele esteja consciente da manipulação, e que finda por assumir a causa dos autores contra sua vontade. As armadilhas do Anti-Édipo são as do humor: tanto os convites a se deixar expulsar, a despedir-se do texto batendo a porta. O livro faz pensar que é apenas o humor e o jogo aí onde, contudo, alguma coisa de essencial se passa, alguma coisa que é da maior seriedade: a perseguição a todas as formas de fascismo, desde aquelas, colossais, que nos rodeiam e nos esmagam até aquelas formas pequenas que fazem a amarga tirania de nossas vidas cotidianas.


(1) FOUCAULT, Michel. Preface. In: Gilles Deleuze e Félix Guattari. Anti-Oedipus: Capitalism and Schizophrenia. New York: Viking Press, 1977, pp. XI-XIV. Traduzido por Wanderson Flor do Nascimento. Revisado e formatado por Alfredo Veiga-Neto.
(2) François de Sales. Introduction à la vie dévote (1604). Lyon: Pierre Rigaud, 1609.

Comentários desativados em INTRODUÇÃO À VIDA NÃO FASCISTA (1)

dez 06 2013

Há muito mais história na História

Published by under Sem categoria

banner-ustra-1

Wiki: Memória, Política e Cinema
Temos algumas informações como: Textos, entrevistas, filmes, documentários…

 

 

Comentários desativados em Há muito mais história na História

nov 29 2013

Lançamento do livro “Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984”

Published by under roda de conversa

Convidamos para o lançamento do livro  “Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984” (São Paulo, Publisher, 2013).

Será no dia 10 de dezembro (terça), a partir das 19 horas,

no bar Canto Madalena,

na R. Medeiros de Albuquerque, 471 – Vila Madalena.

Segue abaixo uma pequena nota sobre o livro:

Livros contra a ditadura

Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984

O período da abertura política no Brasil (1974-1985) foi marcado, no campo da edição de livros, pelo surgimento ou revitalização de “editoras de oposição”, ou seja, editoras com perfil nitidamente político e ideológico de oposição ao governo ditatorial. Compunham um universo que englobava desde editoras já estabelecidas, como Civilização Brasileira, Brasiliense, Vozes e Paz e Terra, até as surgidas naquele período, como Alfa-Ômega, Global, Codecri, Brasil Debates, Ciências Humanas, Kairós, Livramento, Vega, entre outras. Algumas destas editoras mantinham vínculos estreitos com partidos ou grupos políticos oposicionistas, caracterizando-se como editoras de oposição engajadas; outras não estabeleciam vinculações políticas orgânicas ou explícitas mas, por seu perfil e linha editorial, representaram iniciativas políticas de oposição.

Livros contra a ditadura apresenta um quadro geral do surgimento e da atuação das editoras de oposição no Brasil nesse período, analisando o papel político e cultural que tiveram. Além disso, traz estudos de caso de três pequenas editoras de oposição engajadas, a Editora e Livraria Ciências Humanas, a Kairós Livraria e Editora e a Editora Brasil Debates, mostrando como elas se organizavam, as implicações que suas vinculações políticas e ideológicas tinham em seu projeto e como as questões econômicas limitaram ou influenciaram a sua linha editorial.

 

Comentários desativados em Lançamento do livro “Livros contra a ditadura: Editoras de oposição no Brasil, 1974-1984”

nov 25 2013

deixa passar…

Published by under citações

528035_378248298914558_1164847511_n

       oculta, nas ruas
carros, desejo maquinado.
fa-bri-ca-ção ação fábrica
celibato

       oculpa, nas estações
os corpos máquina quebrada fechada,
quebra na quabrada

        ocupa, moleca o corpo
ocup(ação) molecular
a rua tomada! ocupada!

corpo. máquina de guerra. Multidão.

One response so far

nov 25 2013

Encarceramento e Extermínio

Published by under roda de conversa

de Marcelo Naves,  aluno do curso de Filosofia da Unifesp
Roda de Conversa:
“Encarceramento em massa da juventude pobre e negra da periferia”, realizado no dia 05 de novembro, na Unifesp Guarulhos.

No dia 12 de novembro o Núcleo de Filosofia e Política da Unifesp – Guarulhos promoveu a Roda de Conversa “Encarceramento em Massa e Extermínio da Juventude Negra e Periférica”. O debate contou com a participação de cerca de 90 pessoas e teve as presenças de Rodolfo Valente e Danilo Dara, respectivamente da Rede 2 de Outubro e do Movimento Mães de Maio. Foram suscitas inúmeras questões de conjuntura e de atuação política. Sem a pretensão de fazer um relato exaustivo da Roda, elencamos, abaixo, alguns pontos que foram levantados e debatidos.

            Com relação ao encarceramento em massa, destacou-se o vertiginoso aumento de prisões nos últimos 21 anos (desde o massacre do Carandirú, em 2 de outubro de 1992), com destaque para o Estado de São Paulo, que atinge, atualmente, um número superior a 200 mil encarcerados/as (o Brasil tem a 4ª maior população carcerária do mundo. Segundo o InfoPen, há cerca de 550 mil presos/as no país). A política de encarceramento em massa, segundo as reflexões desenvolvidas no debate, constitui um dos instrumentos de controle e contensão dos pobres, em sua grande maioria negros, jovens e moradores das periferias[1]. Um grande número dessas pessoas que se encontram privadas de liberdade ficam meses e até anos em situação de prisão provisória, sem audiência nem julgamento. Constata-se, também, grande quantidade de pessoas presas por pequenos delitos e sem o benefício da progressão da pena. Isso revela o perfil da atuação do sistema judiciário e das decisões judicias. Dentre os/as presos/as, a imensa maioria esteve envolvida com delitos relacionados ao patrimônio e à entorpecentes[2].

De acordo com Rodolfo Valente, é necessário promover a “abertura do cárcere para a sociedade”, revelando todas as violências e condições de vida (!!!) dos/as detentos/as e possibilitando o contato da população prisional com a sua comunidade. Ao mesmo tempo, segundo ele, nenhuma vaga a mais deve ser criada no sistema prisional. Ao contrário, é preciso uma política contundente de desencarceramento e a construção de uma novo paradigma de sociedade, marcadamente não punitivo, não vingativo, não penal e sem cárceres e relações de opressão.

            Com relação aos homicídios, o Brasil vem registrando números exorbitantes, girando em torno de 48, 49 mil assassinatos por ano na última década (em 2012 foram 50.108 assassinatos, segundo o Anuário Estatístico do Fórum Brasileiro de Segurança Pública). Danilo Dara ressaltou, porém, que muitos casos de homicídios não entram nos dados oficiais de assassinatos, assim como os inúmeros casos de desaparecidos/as. Com isso, a quantidade de pessoas que perdem a vida no país, em decorrência de assassinatos, é consideravelmente maior do que os números oficiais. Durante o debate, destacou-se que a maior parte dessas mortes atinge jovens, em sua maioria negros, pobres e moradores da periferia, como ocorre no sistema carcerário. A participação do Estado nessas mortes, através da Polícia Militar, foi amplamente destacada, corroborada pelo recente assassinato do jovem Douglas Rodrigues, de 17 anos, morto em uma abordagem policial, no dia 27 de outubro, na Zona Norte de São Paulo.

Danilo Dara destacou a importância do debate sobre a desmilitarização da polícia, que é, inclusive, recomendação de comissões de direitos humanos de organismos internacionais ao governo brasileiro (documento do Conselho de Direitos Humanos da ONU).

            Tanto para Rodolfo Valente como para Danilo Dara, a ação política em vista da resistência à violência do Estado e da superação de uma sociedade violenta e punitiva passa necessariamente, entre outras coisas, pela articulação, mobilização e protagonismo autônomo das periferias, especialmente dos familiares e amigos/as de pessoas exterminadas e massacradas, dos/as egressos/as do sistema penal igualmente massacrados e estigmatizados.


[1] “A penalidade neoliberal apresenta o seguinte paradoxo: pretende remediar com um ‘mais Estado’ policial e penitenciário o ‘menos Estado’ econômico e social que é a própria causa da escalada generalizada da insegurança objetiva e subjetiva em todos os países (…). Isso é dizer que a alternativa entre o tratamento social da miséria e de seus correlatos (…) e seu tratamento penal (…) coloca-se em termos particularmente cruciais nos países recentemente industrializados da América do Sul (…).

(…) desenvolver o Estado penal para responder às desordens suscitadas pela desregulamentação da economia, pela dessocialização do trabalho assalariado e pela pauperização relativa e absoluta de amplos contingentes do proletariado urbano, aumentando os meios, a amplitude e a intensidade da intervenção do aparelho policial e judiciário, equivale a (r)estabelecer uma verdadeira ditadura sobre os pobres”. (WACQUANT, Loïc, As prisões da miséria, 2ª edição, Rio de Janeiro: Zahar, 2011, p. 9, 10 e 12.)

[2] Segundo Foucault: “Com as novas formas de acumulação de capital, de relações de produção e de estatuto jurídico da propriedade, todas as práticas populares que se classificavam , seja numa forma silenciosa, cotidiana, tolerada, seja numa forma violenta, na ilegalidade dos direitos, são desviadas à força para a ilegalidade dos bens. (…) A ilegalidade dos bens foi separada da ilegalidade dos direitos. (…) E essa grande redistribuição das ilegalidades se traduzirá até por uma especialização dos circuitos judiciários; para as ilegalidades de bens – para o roubo – os tribunais ordinários e os castigos; para as ilegalidades de direitos – fraudes, evasões fiscais, acomodações, multas atenuadas, etc. A burguesia se reservou o campo da ilegalidade dos direitos. (…) Um sistema penal deve ser concebido como um instrumento para gerir diferencialmente as ilegalidades, não para suprimi-las a todas.” (“Vigiar e Punir”, trad. Raquel Ramalhete, 28ª edição, editora Vozes. Petrópolis: 2004, p. 73, 74 e 75)

 

Comentários desativados em Encarceramento e Extermínio

« Prev - Next »